quinta-feira, 11 de março de 2010

ERA UMA VEZ… A DOR

O recém-nascido dormia entretido no seu carro estofado da Chicco. Tinha um belo e robusto rodado, uma alcofa de capota, sacos de apoio e puxador almofadado. Era quente mas pouco arejado… pensava na antiga cama aquática, de tom neutro, quase transparente mas ainda assim opaco, onde durante muito tempo pensava ser a sua definitiva morada.
Foi na luz fina da sala de partos que parou quando abalos sísmicos o empurraram no sentido da descida. Tentara opor-se mas de nada adiantara, a contracção do ninho e a curiosidade tinham-no descontrolado. Rolou e deixou-se levar na vertigem do nascimento; mais tarde viria a comemorar esta data… a da loucura inexplicável de se aventurar na mudança. E era bom estar cá, sentir o cheiro da mãe e sentir o toque das suas mãos, poder sugar o seu leite descorado mas muito, muito gostoso. Revirou um pouco a cabeça; atento, agora já mais acordado, abriu os olhos desalinhados. Alguém falava alto ali perto, Seria quem? A mãe ou a senhora de idade anteriormente agastada na cadeira ao seu lado. Aonde estava? Não percebera nada mas sentia no ambiente duro uma estranheza angustiante que lhe dava vontade de chorar. Tinha, achava, cinco dias e ainda não conseguia entender tudo como queria. Sentia-se aflito e perturbado, longe do coração da mãe. Revia o seio materno e perdia-se na ambivalência do medo da asfixia e do prazer de mamar. Adorava aquele líquido morno que fluía quase como por milagre apenas obedecendo aos seus movimentos rítmicos de sucção… era só dobrar a língua e achatar o bico moldável contra o palato; às vezes era mais difícil, faltava-lhe a prática. Na altura do insucesso tentava melhorar e olhar no rosto da mãe na tentativa da sedução. Alguém voltou a falar alto, chamavam-no? Sentia o perigo à sua volta mas não conseguia evita-lo, os seus membros em teimosa flexão impediam-lhe qualquer coordenação, sentiu falta de forças e o choro saiu-lhe sem querer perdido na ignorância de saber o que fazer. Este lugar seria seguro? Quis voltar ao seu quarto de temperatura constante e luz suave. Não sabia porquê mas esse lugar atraía-o e dava-lhe paz, preferia ficar sempre lá, subir talvez à sala de jantar em tempos esporádicos e horários escrupulosamente convencionados. Mas agora estava ali, na sala de espera do Centro de Saúde, onde iria ser pesado, medido e picado. Não sabia como seria ser-se picado. Iriam despi-lo e rola-lo na mesa fria e na balança gelada? Detestava o desequilíbrio e as arestas do papel amarrotado. Seria só uma coisa pequena, uma beliscadura no calcanhar? Apetecia-lhe mais do que nunca o colo da mãe. Apetecia-lhe ouvir o bater do coração com a face espetada na sua grade costal. Como era bom aquele bater tão rítmico e musical. Assustou-se… ouviu o abrir da porta. Era a sua vez. E lá foi, empurrado e rolando sobre as rodas do seu carro. Lá dentro sentiu-se pegado e despido. Sentiu frio. Sentiu o corpo perdido na nudez e ficou sem limites na alma. Os olhos fecharam-se em lágrimas e os membros agitaram-se-lhe. De repente sentiu uma enorme dor no calcanhar e o sangue soltar-se na ferida espremida. Ai! Mais uma dor no braço e ainda outra. Desatou a gritar, o queixo tremia-lhe e o coração saltava-lhe. Teve falta de ar e concentrou-se no respirar. Queria ser enrolado na manta da avó e voltar ao antigamente, à solidão uterina onde não se lembrava de alguma vez ser dolorosamente estimulado ou ainda de ter chorado.


Fátima Pinto
Texo publicado pelo Instituto de Apoio à Criança (A Dor na Criança - Atendimento de Crianças e Jovens nos Centros de Saúde)
2006

1 comentário:

Ana disse...

Estamos sempre aprender...Nós e eles :)
Beijinhos,
Ana

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